domingo, 11 de novembro de 2007

Redação UFRJ 2008 - Comentários

O tema da prova de hoje - "o cinema como prática social" - foi, a um só tempo, igual e diferente. Igual, pois a banca manteve sua tendência a propor discussões reflexivas, com ênfase cultural e viés social, por meio de uma relação implícita. Diferente, pois o conteúdo aparente (cinema) não é de todo previsível, pelo menos do ponto de vista de uma comemoração ou de um fato marcante - a não ser o debate nacional em torno de "Tropa de elite".

A respeito do que os corretores devem esperar de uma boa redação, podemos destacar quatro pontos principais:

1. Tipo de texto:

A solicitação de um texto dissertativo-argumentativo, nós avisamos, está sempre presente nas provas da UFRJ, mas muitos candidatos se descuidam disso, o que pode ser bastante problemático. Explico: o formato do tema (uma frase nominal afirmativa, como havíamos comentado na aula 1 do Reta Final) pode "enganar" os desavisados, que tenderiam a construir um texto muito expositivo.

No entanto, a argumentação se caracteriza pela tomada de posição, pela presença de um eixo de análise, uma tese, uma linha pensamento. É claro que esse eixo não precisa ser tão óbvio como em algumas polêmicas, mas ele precisa aparecer de alguma forma.

2. Tema relacional:

Na mesma aula 1, vimos que a UFRJ, muitas vezes, apresenta temas "relacionais", ou seja, propostas em que se espera que o candidato estabeleça uma associação entre dois "conteúdos". No caso da prova de hoje, não bastaria falar sobre o cinema (seu valor histórico, suas qualidades e defeitos, sua dimensão econômica), mas interpretá-lo como uma forma de arte que tem valor para a sociedade. Para facilitar a percepção desse valor (ou valores), a coletânea de textos foi muito útil.

3. Coletânea:

Os três fragmentos apresentados no tema de redação eram curtos, mas bastante precisos.

O primeiro, um depoimento do projeto NURC (que eles têm usado com bastante freqüência) constitui uma fala que enxerga no cinema a função de entretenimento, de diversão. Lembremos que, para o homem contemporâneo, a busca de atividades ociosas, com fim nelas próprias, é tão importante quanto rara. Assim, assistir a um filme representa uma espécie de desligamento da realidade "opressora" e das atribulações do cotidiano.

O segundo trecho, retirado de um artigo publicado na internet, diz respeito a dois aspectos interligados: a função catártica do cinema e sua importância na formação da cosmovisão de uma época e/ou de um grupo social. De fato, os filmes ajudam a sociedade a "compartilhar emoções" e moldar seu "modo de pensar". Desde o século XX, a existência dessa ferramenta ajudou a criar essa sociedade audiovisual em que vivemos. Seja no sentido "negativo" de transmitir valores e padrões de comportamento (a tão repetida massificação), seja no sentido de ajudar a "liberar" sentimentos e construir a personalidade dos indivíduos.

O terceiro fragmento, do livro "Cinema & Educação", fala exatamente sobre isso: a função educativa do cinema. Como toda forma de arte, as películas ajudam as pessoas a contruir seu conhecimento de mundo, aprendendo sobre épocas, acontecimentos, personalidades, valores, opiniões etc. Nesse sentido, nossos cine_debates ao longo do ano constituem uma prova de que a percepção interdisciplinar dos conteúdos pode ser muito eficaz com o apoio do cinema. Pela mesma razão, estimulamos tanto que vocês assistissem aos filmes sobre o sociólogo Betinho e sobre o geógrafo Milton Santos.

4. Informatividade:

Durante a última semana, falamos bastante sobre o quanto a UFRJ valoriza redações em que se apresente uma boa relação do tema com o "mundo em que vivemos". Isso significa que a base cultural e o grau de atualização do candidato podem ser bastante significativos.

Nessa perspectiva, levar em consideração o debate provocado por "Tropa de elite" na questão da violência e do papel do Estado seria bastante interessante. Da mesma forma, talvez fosse bom comentar como o filme de Al Gore - "Uma verdade incoveniente", que vimos em nosso segundo Cine_Debate - ajudou a evidenciar a questão do aquecimento global e da consciência ecológica. Obviamente, esses são apenas exemplos que me ocorreram, mas muitos outros poderiam ser pensados para ilustrar o tema.

***

Em linhas gerais, devo dizer que considerei o tema muito bom para vocês. Fiquei pensando bastante sobre o "Nós que aqui estamos por vós esperamos" e aquela idéia de que o século XX só poderia ser resumido mesmo por um filme: afinal, esse foi o século em que o cinema desempenhou um papel decisivo como "espelho" da sociedade. Nesse sentido, aquela frase do Marshall McLuhan - "Os homens criam as ferramentas; as ferramentas recriam os homens" - veio bem a calhar.

Acho também que o Eixo Temático 1, sobre Comunicação, pode ter trazido algumas contribuições importantes para as redações. Na questão número 1, por exemplo, quando falamos sobre a história da humanidade marcada pelas tecnologias de comunicação, o cinema ocupava papel de destaque. Ou então as questões sobre a oposição "palavra X imagem" e sobre o efeito anestésico (banalizador) do audiovisual.

No último Eixo Temático antes da Reta Final, acerca do homem contemporâneo, falamos bastante sobre a criação da assim chamada "sociedade de massa", estudada pelos filósofos da Escola de Frankfurt. Lembrem-se do exemplo acerca do aumento do consumo de cigarro na época em que grandes artistas no papel de grandes personagens fumavam em close.

De forma menos explícita - mas útil, parece-me -, o exercício 3 da aula 2 do Reta Final (sobre "ganchos") trazia dos parágrafos de desenvolvimento de uma redação sobre o papel da arte. Se adaptássemos o conteúdo para levar em consideração o cinema, acho que seria uma boa abordagem do tema. Vejam abaixo o original da folhinha:

Antes de tudo, é preciso reconhecer o caráter catártico de certas obras de arte. Diante de um quadro ou peça de teatro, o público se reconhece, ri, chora, torce, ama e odeia. Constrói, enfim, sua identidade. Por essa razão e por ser por demais sofrido, o brasileiro tem em suas manifestações culturais a oportunidade de superar o fardo da vida e melhorar sua perspectiva social — seja em uma arte “menor” como o futebol, seja em um concerto no Municipal. A sensação de bem-estar, nesses casos, não é rara. Nem inútil.

De fato, além de divertir e ajudar a superar as mazelas diárias, a arte pode ter grande utilidade para um país como o Brasil. Se as instituições de ensino não cumprem adequadamente sua função de formação cultural, os filmes, as canções ou os livros podem ajudar a fazê-lo. É lógico que isso depende, muitas vezes, da qualidade dessa produção. Ainda assim, mesmo nas artes ditas primitivas, muito se tem a aprender e ensinar.


Na aula de véspera, entre as teses apresentadas como exemplo, havia uma também acerca do valor da arte para a sociedade que poderia ter sido aproveitada de alguma forma por vocês. Ela dizia assim:

Sendo expressão de uma sensibilidade apurada, a arte ajuda a entender o país para transformá-lo, ao mesmo tempo em que estimula o nacionalismo crítico.

Finalmente, imaginei que muitos comentários acerca da contemporaneidade - individualismo, papel central dos meios de comunicação de massa, incerteza, desejo de "desligamento" da consciência, dimensão pragmática da educação, entre outros - podem ter ajudado a "fecundar" o tema em vocês, na busca por uma redação mais interessante que a média (desde que dentro do tema e com bastante coerência, é claro).


***

É preciso lembrar a todos que esses comentários não constituem, de forma alguma, um "gabarito", como os mais ansiosos costumam esperar. Seria um contrasenso imaginar essa hipótese.

Na verdade, como enfatizamos sempre, se vocês tiverem prestado atenção total ao tema, se tiverem aproveitado os fragmentos da coletânea como fonte de idéias, se tiverem "bolado" um projeto global, se tiverem pensado bastante na coerência das partes do texto, se tiverem usado uma linguagem clara e correta - enfim, se tiverem aplicado as lições da semana, não há o que temer.

Já falei muito. Agora é a vez de vocês: o que acharam do tema? Fizeram bons textos?

P.S.: Acaba de sair uma matéria na Globo.com com comentários nossos sobre a prova. Acesse aqui.

Um comentário:

  1. Achei o tema bem interessante, mas demorei muito para conseguir terminar a redação. Sem dúvidas, as aulas de redação ao longo do ano e da reta final foram fundamentais para a criação e para o cumprimento dos aspectos formais do texto.
    Queria te mostrar a minha redação, pois estou um pouco insegura. Não falei do tropa de elite, mas tentei trazer outras referências culturais para o meu texto...

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