domingo, 9 de novembro de 2008

Vestibular UFRJ 2009Análise da prova de Redação

Mais uma vez, a banca da UFRJ propõe um tema de redação com viés reflexivo, sem limitações contextuais (espaço ou tempo). De modo sutil, pode-se perceber na escolha da dicotomia normalidade/anormalidade uma homenagem ao centenário de Machado de Assis, cujo conto O alienista serve de epígrafe à prova. Quem conhece o conto sabe que ele procura refletir sobre os limites entre sanidade e loucura, sugerindo que, mais freqüentemente do que se imagina, ambas troquem de posição.

CONTEÚDO DO TEMA

Os textos da prova de LPLB tratam do mesmo tema e poderiam servir de inspiração ao candidato que quisesse procurar mais "material" para seu texto. Na prova de redação propriamente dita, além dos três fragmentos (que analisarei a seguir), havia o seguinte comentário inicial:

Pensar ou agir de modo distinto do da maioria das pessoas pode ser visto como algo simplesmente diferente, ou como inadequação, ou até mesmo como loucura.

Ao falar sobre idéias e comportamentos que fogem a certos padrões, sendo tratados como anormais, a banca utiliza a construção "pode ser visto", que é muito importante para compreender a frase-tema a seguir:

(...) elabore um texto dissertativo-argumentativo em que você apresente suas reflexões a respeito do olhar sobre a normalidade/anormalidade.

Uma análise cuidadosa dos termos utilizados pela banca, com atenção especial em relação à parte em negrito, deve levar a uma interpretação exata: não se trata apenas de discutir a dicotomia normal/anormal, mas sobretudo de refletir sobre o olhar em relação a essas duas posturas. Dito de outro modo, o candidato deveria discutir a questão das perspectivas de julgamento quanto aos comportamentos que fogem aos padrões.

COLETÂNEA DE TEXTOS

Para orientar essa abordagem, havia, como eu disse acima, três fragmentos, cujas idéias principais resumo a seguir:

Fragmento 1: a canção dos Mutantes sugere que a "anormalidade" é relativa a um julgamento feito pelo "outro" e que pode estar associada a uma forma de encarar a felicidade fora do "normal." No contexto em que foi produzida, no início dos anos 70, em plena ditadura e no esteio dos movimentos de contracultura, a canção teve grande significado para uma geração que questionava os padrões vigentes, em busca de paz e amor - objetivos talvez "anormais" para muita gente à época.

Fragmento 2: a frase de um especialista em Psiquiatria associa a normalidade ao condicionamento sócio-cultural, ou seja, ser normal significa adaptar-se às regras morais, fazendo o que o grupo espera que seja feito.

Fragmento 3: nas duas frases de Drummond sobre a loucura, pode-se inferir um olhar crítico, semelhante ao de Machado de Assis, em relação ao que deve ser julgado como loucura. A terceira frase, sobre a lucidez, procura associá-la à perda da imaginação. Como um todo, Drummond pensa na loucura como força criativa muitas vezes sábia (em suas palavras, "razoável").

PONTO DE VISTA, TESE, ARGUMENTAÇÃO

Novamente, a banca da UFRJ solicita um texto dissertativo-argumentativo, o que significa que se deve defender um ponto de vista sobre o tema. Na prática, o formato nominal-afirmativo da frase-tema - isto é, o fato de que não há verbos ou perguntas - dificulta um pouco essa tarefa.

Entretanto, os fragmentos e a própria observação inicial da banca servem de norte ao candidato atento. A partir de várias fontes, sugerem-se algumas idéias e/ou opiniões:

Normalidade e anormalidade não são valores absolutos, pois dependem da perspectiva de quem julga.

A idéia de anormalidade, normalmente negativizada, pode ser encarada de modo oposto: imaginação, senso crítico, felicidade.


Como se pode perceber, essas opiniões se complementam e podem constituir um ponto de vista a ser defendido na redação.

Nesse caso, a banca não parece estar preocupada com a inventividade da opinião a ser escolhida, mas com os argumentos elencados pelo aluno, que devem ser articulados em um todo coerente. Em outras palavras, o que conta não é a opinião defendida (escolha óbvia para a maioria), mas o modo de demonstrá-la.

UFRJ/RETA FINAL_A_Z

Lembrando-me das aulas desta semana, não pude deixar de pensar em alguns pontos que podem ter sido úteis para vocês na elaboração de seus textos. Além do perfil da prova que descrevemos na primeira aula e dos aspectos estruturais da aula 4 (coletânea, interpretação da frase-tema, construção da tese e coerência), acho que seria possível pensar em alguns conteúdos vistos nos Eixos Temáticos das aulas 5 e 6, além do conteúdo trabalhado durante o ano:

* Civilização/barbárie - em muitas aulas, inclusive a de ontem, falamos sobre o quanto os padrões comportamento do homem ocidental são convenções, isto é, representam modelos fundados em premissas morais, sobretudo iluministas, que têm sido colocadas em xeque nos últimos tempos. Nesse sentido, aquilo que muitos julgam como decadência ou mau gosto (exposição do corpo, escatologia, sexualidade explícita), talvez seja apenas uma outra maneira de responder aos desejos e impulsos primitivos, sem se submeter à ditadura da "razão".

* Condição humana - na aula de sexta, utilizamos um poema de Walt Whitman para refletir acerca daquilo que distingue homens de animais, que seria a consciência. Discutimos o quanto essa instância é responsável por dar sentido às coisas e mostrar ao homem suas limitações. Comentamos, ainda, a necessidade do ser humano de "desligar" a consciência de vez em quando e de como a contemporaneidade endossa esse horror ao sofrimento a qualquer custo. Nesse sentido, seria interessante associar a sanidade à consciência, a fim de discutir o quanto uma depende ou não da outra.

* Intolerância - também na aula de sexta, falamos sobre o paradoxo do aumento de intolerância em um mundo que as pessoas se aproximam pelos meios de comunicação. Pelo que vimos, a relação de "alteridade" (comparação do "eu" com o "outro"), pode levar tanto à aproximação quanto ao distanciamento, conforme se enfatizem as semelhanças (humanas) ou as diferenças (culturais). Acredito que seria interessante mostrar que o julgamento do "outro" como anormal tem grande relação com o etnocentrismo humano e com uma visão superficial, que não mostre aquilo que todos compartilham em sua dimensão humana profunda (sentimentos, desejos, pensamentos).

* Felicidade -nas discussões acerca do conceito de felicidade, além de abordar o quanto se trata de algo relativo, falamos sobre a idéia de que talvez o descontentamento esteja na base da humanidade e que a visão objetiva sobre "ser feliz" que muitos têm hoje nada mais é do que uma herança do raciocínio iluminista (razão=progresso=felicidade). Ao ler o trecho da "Balada de um louco", pensei em relacionar a felicidade "louca" citada na canção a essa felicidade burguesa discutida em sala.

* Pragmatismo, instrumentalização e reificação - esses três conceitos, pelo que vimos na véspera da prova, estão na base de muitas idéias e comportamentos contemporâneos. Seria interessante pensar que, muitas vezes, aquilo que se considera normal é simplesmente a adaptação ao sistema produtivo. Acho que chegamos a comentar que pessoas críticas, por exemplo, podem ser "obstáculos" que "atrapalham" a economia e a lógica do mundo civilizado. Seria interessante pensar que o homem normal nada mais é do que um sujeito reificado, transformado em "coisa".

* Cosmovisão Pós-Moderna - na aula de ontem, também falamos sobre a visão de mundo contemporânea, em um contexto de crises e mudanças constantes. Pelo que vimos, o fim das fronteiras e a vigência de uma era de incertezas leva o homem a não conseguir mais classificar as coisas com padrões do século XIX. Ao não saber sequer o que é próprio ao humano, tal é a força dos artifícios tecnocientíficos, as pessoas passam a viver sob uma espécie de relativismo radical. Certo/errado, positivo/negativo, verdadeiro/falso - todas essas categorias mudam de lugar constantemente, assim como o par normal/anormal.

Obviamente, ninguém seria obrigado a utilizar essas idéias, no todo ou em parte, em sua redação. Acredito, porém, que essas são boas referências para guiar a abordagem de quem está matriculado no curso e no colégio.

Visitem o projeto umminutodeaaz.

2 comentários:

  1. A minha redação ficou mais ou menos no eixo do que foi descrito sobre a vontade da banca nesse post, mas eu li na escola esse ano o conto O Alienista e, sinceramente, não me serviu de nada.
    A busca pela compreensão da loucura do conto é muito ligada ao personagem principal. Na hora de elaborar meu texto pensei em colocar um pouco do que foi sugerido por Machado, mas fiquei confusa sobre a opinião dele, a de seu personagem e a geral.
    Resumindo, o fato te der lido o conto só me confundiu mais.
    Mas esse post me acalmou, acho que segui direitinho o que foi pedido.
    Obrigada professor Rabin.

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  2. Procurei revisar os módulos de RIT indicados para a prova da UFRJ, em especial os iniciais, que tratam da estruturação do texto e foi muito útil.
    Na semana pré-prova, fiz uma redação utilizando o recurso da introdução por digressão, pra treinar um pouquinho e consegui fazer o mesmo no grande dia =)
    Associei o fordismo à "produção" de indivíduos padrão, na qual é desprezada a singularidade de cada um, por vezes compreendida pela sociedade como loucura.

    Valeu professor, a indicação de módulos a serem revisados auxiliou muito!

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